Olhando nosso dia a dia, com mais ou menos tempo, vemos que ele se alterna entre o quotidiano e o extraordinário. Para uns e outros, aqui e ali, airoso ou tempestuoso, ele não foge desta alternância. Isso se chama "diário", entendido como processo de maturação, aprendizagem, sabedoria, passagem e peregrinação, e, para os cristãos, um caminhar à luz do Evangelho. Assim se constituem e se estabelecem entre nós, a linha do tempo e o viver ordinário da vida, no trabalho, no lazer, nas relações de família e de afeto.
O que acontece a mim e a ti quando a arte de viver o quotidiano se altera bruscamente? E quando este se torna um infindo sofrimento físico? Ou na experiência de um sofrimento existencial com a negação das verdades e convicções pessoais? Ou, ainda, um sofrimento espiritual, pela sensação de um vazio interior de negação da vida e do sagrado? E, para a sociedade, num todo, quais as reações mais comuns diante da extraordinariedade do ordinário? Quem responde a quem, quando a dor é comum e ao mesmo tempo?
Quem socorre quando o medo e a desesperança se abatem sobre o coletivo, com a mesma intensidade e temporalidade? Em quem buscar energia para salvar-se quando o ordinário se chama extraordinário, num mal-estar mundial e repentino que atinge, frontalmente, nosso delírio de onipotência e de arrogância?
Diante deste quadro sintomático e dramático, uma cena e uma fala impressionaram o mundo, no dia 27 de março de 2020, quando, na Praça São Pedro, o Papa Francisco fazia a sua leitura da pandemia, emoldurada numa prece paternal.
[...]Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo a sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho (Marcos 4.35-41), fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furiosa.
Demo-nos conta de que estamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas, ao mesmo tempo, importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento [...]
Trazendo a narrativa bíblica dos discípulos, em alto mar, pedindo socorro a Jesus, Francisco faz um paralelo entre a tempestade dos discípulos e a tempestade Covid, dizendo que a tormenta não é tempo do juízo divino, mas, do nosso juízo, o tempo de decidir o que conta e o que passa, tempo de reajustar a rota da vida rumo a Deus e aos outros.
Continua o Papa afirmando que o ordinário se torna extraordinário, pois avançávamos destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. E, na velocidade, tivemos que parar, antes fortes e capazes, agora, doentes e prostrados. E, repete-se o mesmo lamento de ontem: salva-nos, Deus!
Na viagem e no extraordinário de agora, mudamos o nosso modo de olhar a tudo e a todos e passamos a perceber o que não víamos. Contemplamos, agora, a exemplaridade dos que estão na viagem, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. Passamos a perceber em cada viajante a força operadora do Espírito, derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. Estavam e agiam ao nosso lado e não percebíamos. A tempestade é um convite a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar. Conclui o Papa, dizendo que abraçar o Senhor é abraçar a esperança.
Enfim, a tempestade que atravessamos faz o quotidiano extraordinário tornar-se um ordinário de esperança, com um olhar mais generoso às pessoas, antes invisíveis, e enobrecendo o espaço de convivência, único barco em alto mar a nos conduzir, salvos, ao porto da próxima esperança.
Texto: Enio José Rigo
Pároco da Catedral